quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Perseguição da Religião

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Perseguição da Religião
Gilbert Keith Chesterton
The Illustrated London News, 8 de março de 1924
Traduzido por Antonio Emilio Angueth de Araujo
Tradução do original The Persecution of Religion


Nota do tradutor: Chesterton nunca foi um mero crítico literário, embora seja autor do que há de melhor em termos de crítica literária na Inglaterra do início do século XX. Ele sempre fazia de sua crítica ― crítica cultural, de idéias ― um instrumento de luta contra as concepções que considerava destrutiva ao ser humano. Vivendo numa época herdeira de todo o racionalismo dos séculos XVIII e XIX e de todo o cientificismo fin de siècle, e ao mesmo tempo belle époque, ele usava toda a sua extraordinária capacidade para chamar a atenção de seus leitores para o quão irracionais eram aquelas noções modernas que surgiam dos melhores cérebros de então. Neste artigo, ele se defronta com um conhecido adversário de idéias, o Sr. Bernard Shaw, e sua crítica se concentra numa longa peça teatral escrita pelo famoso dramaturgo inglês.


Muitos de nós sentimos algo por demais fascinante, para não dizer alarmante, sobre a situação do homem que é encarcerado num asilo de loucos por oito anos por ser religioso, ou por ter um razoável interesse pela palavra “paralelogramo,” e pela idéia do fim do mundo. A perseguição da ciência pela religião é algo de que ouvimos muito, e muito mais do que é historicamente correto. Mas, de qualquer modo, isso praticamente acabou. A perseguição da religião pela ciência talvez tenha proporcionalmente apenas começado; mas já está em ação em não se sabe quantos casos obscuros de pedantismo e crueldade. Os místicos serão muito provavelmente os mártires quando os psicólogos forem os reis. Mas há aí um paradoxo envolvido que é ainda mais peculiar. Não é que apenas qualquer coisa religiosa deva ser perseguida sob a alegação de que não seja racional. É também que qualquer coisa irracional deva ser tolerada contanto que seja também irreligiosa. É tão somente loucura defender a religião; já não é mais loucura negar a razão. Se fosse, todos os professores de pragmatismo estariam encarcerados. Os próprios incidentes desse caso permitem uma ilustração. Um homem pode ser representado como louco ou como construindo uma charada mística com a palavra “paralelogramo”. Mas um homem não é considerado louco porque diz que linhas paralelas sempre se encontram. Nossos pais o teriam chamado de louco desvairado, por negar algo auto-evidente e proferir uma contradição em termos. Nós meramente o chamamos de matemático das novas escolas da relatividade ou da quarta dimensão. O homem que dizia: “Dois e dois pode ser cinco nas estrelas fixas” era um louco; e louco mesmo sendo um erudito. Eu de bom grado admito que homens de ciência não tenham o monopólio desse colapso mental. Mas certamente o homem que fosse capaz de falar como se as estrelas fossem fixas, e os números não, estaria sofrendo um completo colapso mental. O mesmo acontece com a outra forma de insanidade alegada nesse caso. É muito menor loucura esperar o fim do mundo para breve do que esperar o Super-homem para breve. Ainda assim, quantos evolucionistas fervorosos de nosso tempo escreveram seriamente como se o Super-homem fosse surgir na próxima semana? As coisas chegam realmente ao fim; e uma coisa projetada é geralmente reexaminada pelo projetista quando chega ao fim. Um homem que planta uma azaléia a vê florescer e fenecer e manifesta-se sobre o experimento; e não há nada irracional com um dia de julgamento, pressupondo um projeto. Mas não há nada no mundo a mostrar que uma azaléia por si mesma desenvolver-se-á em uma super-azaléia com todas as cores do arco-íris, apenas porque essa seria uma planta superior. O Super-homem foi apenas e tão somente um fantasma evocado do vazio pela imaginação de um louco; um homem literalmente louco chamado Nietzsche. Mesmo assim, quão vívida essa visão completamente absurda se tornou para muitos de nossa hesitante e débil geração! E a coisa mais estranha de todas é que tenham sido assim enfeitiçados alguns dos melhores cérebros. Eles também têm sua palavra sagrada “paralelogramo,” como, por exemplo, a palavra sagrada “Mesopotâmia”; mas, enquanto poucos são os soldados que querem voltar à Mesopotâmia,[1] há evidentemente sábios que desejam voltar a Matusalém.[2]

Desnecessário dizer que não estou discutindo se o Sr. Bernard Shaw tem um parafuso a menos na cabeça; estou apenas enfatizando que há muito mais parafusos faltantes no Hall da Ciência do que na igreja paroquial, ou mesmo na capela revivalista.[3] Ao contrário, é meu desejo aqui penetrar para além das esquisitices do experimento dramático do Sr. Bernard Shaw, e considerar se a idéia em si é de fato tão sã quanto é certamente séria. O Sr. Shaw tem sido submetido à crítica por duas classes de críticos. A primeira é composta daqueles que dizem que não sabem o que ele quer dizer, e consideram necessário inferir que ele não diz nada. A segunda é composta daqueles que pensam que sabem o que ele quer dizer, e consideram necessário concordar com ele. Poucos são os que parecem perceber que é bem possível entender completamente o ele diz e discordar dele totalmente. Mas, com efeito, é somente levando-o a sério que alguém consegue discordar dele seriamente. O homem que diz que todas as peças de Shaw não têm sentido está oferecendo valoroso apoio ao homem que diz que todas elas fazem sentido. Por confessar sua inabilidade de fazer delas algum nexo, ele está se impedindo de discutir com aquele que delas faz o nexo para tudo. Ele é como um homem que deveria defender o cristianismo contra a “Vie de Jésu”, de Renan, dizendo que agradece a Deus por não entender francês. Ou é como o homem que deveria responder a uma denúncia política detalhada dizendo que o sujeito balbuciou tão rápido que o impediu de entender. Seria impossível fazer uma homenagem maior à verdade de uma filosofia do que dizer que ninguém a entende, exceto uns poucos que a consideram verdadeira. Seria impossível fazer um elogio maior ao Sr. Shaw do que sugerir que ele ilude os estúpidos e convence os sábios. Todavia essa é exatamente a impressão que é necessariamente deixada se meramente se ridiculariza a excentricidade, ou extravagância, ou a extraordinária extensão, ou outra característica fantástica, mas meramente externa, de uma obra como “De volta a Matusalém (Um Pentateuco Metabiológico)”.[4] Tenho tentado sempre fazer, portanto, em minhas críticas o que o Sr. Shaw faz em prefácios, e discutir a doutrina que é a espinha dorsal de toda a questão. Pois o Sr. Shaw, de todos os homens do mundo, não deixa a seus críticos o menor direito de alegar que não entenderam o que ele diz; pois ele explica elaboradamente tudo de antemão. Único dentre os mais fantásticos fabulistas, ele não somente adorna a fábula com uma moral, mas realmente coloca a moral antes da fábula.

O prefácio a esta peça particular trata,[5] em primeiro lugar, de uma questão mais particular; sobre o que o Sr. Shaw parece-me provar completamente seu ponto de vista; o de que a versão darwinista da evolução não se assemelha, no mais enfático sentido da frase, à vida. É impossível acreditar que a vida seja tão separada da vontade, como se conclui da noção de que a seleção natural produz toda a variedade da natureza. Ela é uma excessiva confluência fortuita de animais, tal como uma confluência fortuita de átomos. Nesse sentido, cada capítulo da “Origem das Espécies” pode ser precisamente descrito como um capítulo de acidentes. A seleção natural é a coisa mais artificial que podemos conceber. É um eterno incidente. Mas não é somente verdade que a seleção natural não seja absolutamente natural; é também verdade ― e esta é toda a questão sobre ela ― que ela não é absolutamente seleção. Ninguém seleciona; e o nada não pode selecionar. Parece-me, no sentido mais luminoso e amplo, uma questão de senso comum dizer que, se não houve um claro projeto desde cima, então houve um obscuro projeto vindo desde baixo; e é muito possível, claro, que ambos existiram. Toda essa parte preliminar do prefácio e do argumento é razoável e solidamente fundamentado; porque ele está tratando de uma teoria definida e dando razões para se discordar dessa teoria. Em outras palavras, ele está tentando fazer em relação a Darwin o que estou tentando fazer em relação a Shaw.

A noção do Sr. Shaw não pretende ser absurda, mas é absurda; não digo isso como uma ofensa, mas no exato sentido em que tenho dito que as pessoas mais razoáveis teriam considerado absurdo o moderno discurso sobre pragmatismo e paralelismo. Qualquer pessoa racional, e especialmente qualquer pessoa racionalista, o teria considerado irracional. Qualquer cético, de Lucrécio ou Luciano, a Hume ou Huxley, teria considerado muito mais racional dizer que o mundo estivesse chegando ao seu final dentro de cem anos do que dizer que a vida de um homem não tivesse seu fim dentro de trezentos anos. A mera escala, o mero escopo das modernas profecias teria parecido completamente desequilibrado e extravagante a todas as filosofias da história da civilização. Penso que eles estavam certos; mas não somente por causa de algo externamente extravagante acerca da escala ou do escopo. O que é artificial sobre essa filosofia é que ela não aceitará a única norma que ela consegue afinal obter; aquela que Aristóteles chamou a medida de todas as coisas. Uma boa e feliz humanidade é, falando humanamente, a idéia pela qual testamos as idéias políticas e sociais; é o teste; é, nesse sentido, o ideal. Essa religião futurista não a aceitará como normal e prosseguirá caçando um novo “normal” que nunca conseguirá encontrar. Não pode nunca encontrá-lo porque não pode nunca fixá-lo. É óbvio, claro, que um ideal permanente é absolutamente necessário para algo como progresso ou reforma. Não se pode reformar o que é eternamente informe; e não se pode marchar em direção ao que está sempre em movimento. Que sentido tem o progressista garantir que as crianças do futuro terão melhores sapatos, quando o profeta já está dizendo que elas não terão pés? Pode parecer uma comparação maluca dizer que as crianças não terão pés. Mas é muito menos maluco do que dizer que as pessoas não terão filhos. E é realmente parte desse esquema futurista que a nova geração nasça madura, sem passar pela infância. Esse é um excelente modelo de trabalho para toda a questão. Para nós, um mundo sem crianças não seria um mundo melhor, mas um mundo muito pior. Não seria uma Utopia impossível, mas simplesmente um intolerável pesadelo. E isso simplesmente porque mantemos em nosso horizonte o que os loucos evolucionistas perderam de vista, que não pode haver nada mais ideal do que o ideal; e a única coisa que afeta a humanidade como um ideal é que é inteiramente humano ser divino. Para alguns de nós isso está fixado por uma divina humanidade, e mesmo por uma criança divina.


[1] Referência à Campanha da Mesopotâmia, da I Grande Guerra, ocorrida em 1914 onde hoje é o Iraque, em que tropas aliadas (principalmente inglesas) enfrentaram as tropas das potências centrais, principalmente do Império Otomano. (N. do T.)
[2] Referência à peça de Bernard Shaw, “De volta a Matusalém”. Ver nota 4, a seguir. (N. do T.)
[3] O Revivalismo foi um movimento nascido no século XVIII, principalmente nos EUA, e pregava, por meio de ministros itinerantes, o perdão do pecado pessoal pela fé a Jesus Cristo, a responsabilidade pessoal por uma disciplina pessoal de oração, a leitura da Bíblia e apoio a uma igreja. Tal movimento foi uma reação, dentro mesmo do protestantismo, às principais denominações, que davam muito ênfase ao ritual, a uma exatidão doutrinal, em detrimento à experiência religiosa pessoal. (N. do T.)
[4] Obra de Bernard Shaw escrita logo depois da I Grande Guerra, e publicada em 1921, composta de um Prefácio e cinco peças: No Princípio: 4004 a.C. (No Jardim do Éden); O Evangelho dos Irmãos Barnabás: Hoje em Dia; A Coisa Acontece: 2170 d.C; A Tragédia de um Cavalheiro Ancião: 3000 d.C; Tão Longe Quanto o Pensamento Pode Alcançar: 31.920 d.C. Chesterton faz uma primeira menção a esta peça, e faz a ela algumas críticas, em seu artigo de 16 de julho de 1921, no The Illustrated London News. (N. do T.)
[5] No prefácio da peça “De Volta a Matusalém”, Shaw fala do generalizado desalento e pobreza na Europa depois da I Grande Guerra e relaciona essas questões aos governos ineptos. As sociedades primitivas e simples, ele diz, eram facilmente governadas, ao passo que as sociedades civilizadas do século XX são tão complexas que aprender a governá-las adequadamente não poderia ser conseguido no período de uma vida humana. Pessoas com suficiente experiência para tal estão próximas da senilidade e da morte. A solução de Shaw é a longevidade aprimorada: devemos aprender a viver mais; um homem de cem anos deveria estar antes da meia idade. Essa mudança, Shaw prediz, acontecerá por meio da Evolução Criativa (mudanças evolucionárias que ocorrem porque são necessárias ou desejadas ― ponto de vista de Lamarque ― e não como o resultado da seleção natural darwinista) sob a influência da Força Vital (conceito criado por Henri Bergson, segundo o qual um impulso vital, ou uma força vital, gerou as variações que, durante o curso da evolução, produziu novas espécies). Shaw diz que estes são os nomes por ele escolhidos para o que as igrejas chamam de Providência e os cientistas chamam de adaptação funcional e seleção natural (dentre outros nomes) e dá os devidos créditos a Henri Bergson. Contudo ele usa ambos os termos em “Homem e Super-homem” que foi escrito nove anos antes do trabalho de Bergson ser publicado. Shaw também elabora, no prefácio, uma teoria da educação, o método pedagógico homeopático, que consistia em mentir para os estudantes até que estes fossem capazes de perceber as mentiras e discutir com os professores. (N. do T.)

Fonte: Chesterton Brasil

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