quarta-feira, 18 de junho de 2014
Voltemos a Santo Agostinho
“Falar da Igreja apenas em termos de programação leva inevitavelmente a pensar que, tudo somado, o ato de fé parte dos homens. E esta é a transposição, em termos pastorais, do pensamento de Pelágio”.
Entrevista com Francesco Moraglia, patriarca de Veneza
Entrevista com o patriarca de Veneza Francesco Moraglia por Gianni Valente
“Não seremos capazes de oferecer respostas adequadas, sem um acolhimento renovado do dom da Graça; não saberemos conquistar os homens para o Evangelho, se nós mesmos não formos os primeiros a viver uma profunda experiência de Deus”. São palavras de Bento XVI aos bispos italianos reunidos em assembleia plenária, dia 24 de maio passado. Enquanto se aproxima o Ano da Fé, o sucessor de Pedro não perde ocasião para sugerir a única coisa que realmente considera muito. São tempos confusos, a serem vistos, todavia, com “um olhar reconhecido pelo crescimento do trigo bom também num terreno que se apresenta muitas vezes árido”. Tempos em que a atualidade eclesiástica parece tornar mais evidentes e luminosas as palavras de Jesus “Sem mim nada podeis fazer” (Jo 15,5). “Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos” (Mt 28,20).
Neste contexto monsenhor Francesco Moraglia viveu os primeiros passos do seu ministério como novo patriarca de Veneza. As suas respostas, na entrevista que segue, são uma ajuda simples para viver como tempo propício o iminente Ano da Fé. Livrando o campo de todo risco de “auto-ocupação” eclesial.
Bento XVI, durante a sua viagem a Portugal, disse: “Muitas vezes preocupamo-nos afanosamente com as consequências sociais, culturais e políticas da fé, dando por certo que esta fé exista, o que infelizmente, é cada vez menos realista”. Depois convocou um Ano da Fé. O que o Papa quis sugerir deste modo?
FRANCESCO MORAGLIA: Convocando o Ano da Fé, o Santo Padre quis indicar aquela que desde sempre – portanto hoje também – é a realidade que fundamenta a vida do crente e da Igreja, ou seja, a fé.
É justamente a concepção que se tem da fé que determina o consequente modo de entender o cristianismo, e sendo a fé o início da vida cristã, então para a fé vale o que o evangelista Marcos diz a propósito da parábola do semeador: se não compreendeis esta como podeis entender todas as outras parábolas? Enfim: segundo a ideia que temos da fé, origina-se e desenvolve-se um tipo de cristianismo ou um outro.
Os jornais escrevem: esse Ano da Fé serve para “revitalizar” a fé. Mas nós temos poder para isso? Somos nós – a Igreja, o Papa, ou os fiéis – os artífices da nossa fé?
A Igreja, o Papa, os fiéis, assim como os teólogos, não são a origem do ato de fé e da vida do crente.
Por isso devemos prestar atenção de como falamos. No âmbito humano e eclesial a linguagem reveste uma importância fundamental; ora, falar da Igreja apenas ou principalmente em termos de programação, assim como reduzir a evangelização a uma questão de linguagem, leva inevitavelmente a pensar que, tudo somado, o ato de fé parte dos homens. Desse modo tudo é reduzido a uma operação humana. Mas esta – considerando muito bem – é a transposição, em termos pastorais, do pensamento de Pelágio; no meu modo de ver, hoje, mais do que nunca, devemos recordar o nome de Agostinho, a cuja escola todos, pastores e fiéis, devemos retornar.
Voltando à sua pergunta: a Igreja, o Papa e os fiéis podem – propriamente falando – revitalizar a fé, principalmente, colocando-a com renovada força ao centro da vida eclesial e propondo-a como método de vida, melhor, como o caso sério do cristão.
Como inicia a fé? Pode ser o resultado de um plano educativo que faça transparecer o sentido religioso do homem?
Limito-me a dizer que a fé, sendo o termo da graça, é puro dom! De fato, não gostaria que, principalmente no contexto atual, diminuindo o vigor de tal afirmação se acabasse – como já disse – por qualificar a fé em termos demasiadamente humanos. Certamente a expressão: a fé é pura graça, deve ser entendida no sentido de que a fé sempre nos é oferecida de modo humano, ou seja, interpelando a nossa liberdade e jamais prescindindo desta como da nossa responsabilidade.
Como se mantém, se alimenta e cresce a fé? Como fazer para não perdê-la? É questão de tenacidade?
A fé se mantém simplesmente vivendo-a cotidianamente na companhia da Igreja; dia após dia, portanto, ela se alimenta e cresce se pertencermos ao mundo da fé e renovarmos todos os dias a escolha da fé; em outros termos, deixando-se levar pela fé e recordando que – na realidade da vida – para o cristão tudo é dom. Certamente, descobrir-se criaturas e alegrar-se em sê-lo, sentir-se na própria pessoa e na própria história como parte de um todo, de um projeto que sempre nos precede e acompanha, é esta, podemos dizer, a graça da obra. Considero particularmente eficaz a expressão usada por Bento XVI em Porta fidei: “A fé cresce quando é vivida como experiência de um amor recebido e é comunicada como experiência de graça e de alegria....”.
Quando se fala da fé, as chamadas ao Espírito, à Graça, a Jesus, às vezes parecem formulários rituais, premissas obrigadas pelo “jargão” eclesial, para depois passar ao “assunto verdadeiro” em que a atenção é dada à estratégia, à fórmula a ser adotada, ao plano educacional que nos é confiado.
Algumas vezes acontece que estas chamadas estejam quase ausentes da linguagem mesmo dos que se confessam cristãos! Deste modo enfraquecem os fundamentos da vida batismal. E isso é ainda mais grave se pensarmos que a linguagem é a máxima força expressiva da cultura de uma pessoa; em algumas catequeses, por exemplo, passou-se da confissão de Jesus Salvador, a Jesus entendido como mestre, depois amigo, e enfim como força espiritual.
Mas se a fé, que na vida da pessoa e da Igreja é essencialmente dom e cumprimento, é desvalorizada nessa sua dimensão, e tudo leva a se tornar programação pastoral e construção humana, ofuscando o Espírito em escolhas organizativas, então também a salvação se torna um fato de pura programação teológica e organização pastoral. Os exemplos não faltam portanto limito-me a indicar um deles em âmbito celebrativo litúrgico: o hiperativismo criativo e um certo protagonismo diante da assembleia.
Em muitos discursos, a fé é identificada e contrario, como se a sua afirmação fosse antes de tudo uma resposta a tendências e filões culturais da modernidade em que vivemos. O que o senhor pensa desse tipo de abordagem? A fé tem como primeiro andamento expressivo a confutação cultural da não-fé?
Sim é verdade, o risco indicado existe mesmo.
A fé, antes de tudo, deve ser a fiel a si mesma, ou seja, deve dizer Jesus Cristo, dizê-lo bem, dizê-lo a todos, dizê-lo de modo compreensível e a partir – como ensina a Dei Verbum – da Palavra de Deus transmitida pela Igreja.
A crítica que era dirigida a uma certa manualística coincidia justamente pelo deixar-se levar por determinadas “questões” que se queria confutar, terminando por reduzir e até mesmo desvirtuar, de maneira inaceitável, as verdades de fé que, por si, queria-se anunciar.
Concretamente, para aproveitar da ocasião do Ano da Fé, o que é preciso fazer? Tomar iniciativas? Fazer discursos?
A fé é resposta a uma pessoa – à pessoa de Jesus Cristo –; então os discursos, as conferências, os congressos por si são ainda insuficientes diante da realidade humano-divina da fé; seria suficiente se a fé se colocasse unicamente no plano humano, se fosse uma pura escolha ética ou uma tese filosófica. Porém a fé, ao invés, pede para ser colhida e vivida na sua realidade sacramental, ou seja, realidade humana e divina.
Tenho certeza, para fazer um exemplo, que uma mais intensa participação e cuidadosa educação à celebração litúrgica, por parte do povo de Deus – pastores e fiéis –, em vista de uma renovada vida de caridade para com Deus e o próximo, seja uma proposta congruente, um ponto certo de partida, em vista do Ano da Fé.
Trata-se, repito, de envolver toda a comunidade eclesial no evento da Páscoa – morte/ressurreição – de Cristo; deste modo somos logo levados ao centro do evento salvífico que se pode colher somente na fé; o coração do ato eucarístico se caracteriza, justamente como mysterium fidei.
Jesus e a Samaritana, detalhe dos mosaicos da Basílica de São Marcos em Veneza
Se a fé é um dom de graça, no início e em cada passo do caminho, o que isso comporta para a Igreja, para a sua forma e para as suas dinâmicas?
Comporta inúmeras coisas. Indico uma que me parece ajudar a compreender: aludo ao uso do adjetivo possessivo “nossa”, colocado diante do substantivo Igreja; esse é um modo de se exprimir que comunica proximidade, afeto, simpatia para com a Igreja, porém se não se tem a prontidão de mantê-lo unido à outra expressão: “Sua” Igreja, o risco é de considerarmos a Esposa de Cristo como uma nossa criatura, um nosso produto, uma realização humana que, resumindo, justamente porque é “nossa” podemos sempre e de novo reconstruir ou destruir como quisermos. Ao invés, a Igreja antes de tudo, é Sua, ou seja é de Cristo que, segundo a bela simbologia patrística dos primeiros séculos, depois retomada na Idade Média, é o sol, enquanto a Igreja se coloca como mysterium lunae e é totalmente iluminada pelo sol.
Às vezes, também na nossa recente atualidade eclesial, esta percepção do ponto de origem da Igreja parece se ofuscar para muitos cristãos, com uma espécie de inversão: de reflexo da presença de Cristo, passa-se a sentir a estrutura eclesial como uma realidade empenhada em atestar a si mesma a própria presença relevante na história. E esta atestação de si mesma é apresentada como um modo para “demonstrar” a credibilidade do cristianismo. A que podem levar estas dinâmicas?
Se perdermos de vista que o evento cristão é algo real e histórico, que se refere à carne e ao sangue, então este fato nos leva a uma visão “espiritualista” que não consegue mais interceptar o homem concreto feito de carne e sangue.
Assim, se perdermos de vista que a Igreja é corpo de Cristo, então, em cada circunstância, a Igreja estará em busca da sua legitimação e afirmação, tornando-se auto-referencial. Pensemos aos dois discípulos de Emaús que não percebem o Ressuscitado, continuam a falar dos seus problemas, das suas tristezas e não conseguem abrir os olhos para Ele e vê-lo.
É o drama, sempre possível, da auto-referencialidade da Igreja, que quer dizer: perda da sua identidade sacramental; a Igreja, de fato, nos recorda ainda o Vaticano II, na Lumen gentium, é sacramento de Cristo e, assim, o ofuscamento desta realidade não é pouca coisa.
De modo análogo, às vezes parece que a intenção de atestar a fé no mundo seja confiável a iniciativas extraordinárias ou mesmo espetaculares.
Mas encaminhar-se nesta direção quer dizer contrastar o que Jesus disse e fez no Evangelho, e com a própria realidade do viver humano, feito de gestos cotidianos. Fazendo assim, a Igreja se autodestruiria, não se pode viver, com efeito, de coisas extraordinárias, mas ordinárias: as coisas de todos os dias; o Evangelho não é para poucos eleitos e não é feito de coisas vividas una tantum. Ao contrário, é questão de salvação todos os dias e para cada homem.
O início do Ano da Fé coincide com os cinquenta anos do início do Concílio Vaticano II. Alguns atribuem a crise de fé diretamente àquele evento, chegando a interpretá-lo como a origem do retrocesso do cristianismo ou até mesmo como o instrumento de penetração de um pensamento não católico na Igreja. Qual é a sua opinião sobre isso?
A minha ordenação sacerdotal ocorreu em 1977, portanto posso dizer que nasci teologicamente e como sacerdote depois do grande evento eclesial do Concílio Ecumênico Vaticano II. Se relermos os textos conciliares, se interpretarmos o espírito a partir da letra e não contra a letra, se não nos jogarmos em afirmações do tipo: “por fidelidade ao Concílio é preciso ir além do Concílio” (frase na qual cada um pode encontrar o que, a cada vez, mais lhe agrada), então não podemos deixar de considerar o Concílio como uma verdadeira graça para a Igreja do nosso tempo. Aqui também, mais uma vez, Bento XVI nos indica a estrada principal falando da hermenêutica da reforma na continuidade e tomando distância de toda a hermenêutica de ruptura.
O Ano da Fé teve o seu precedente no ano de 1967 com Paulo VI, que culminou na proclamação do Credo do povo de Deus. Como o senhor viveu pessoalmente aquele período, como o recorda?
Na época eu era um adolescente, tinha quatorze anos, recordo bem que se sentia nos meios de comunicação e de consequência na sociedade, o crescimento de um clima suspeito e todavia hostil ao magistério da Igreja. Via-se com clareza a tentativa de dividir as estruturas eclesiais, contrapondo o magistério – principalmente o do Papa – aos fiéis, considerados o verdadeiro povo de Deus. Esquecia-se, ou talvez não se quisesse recordar, que a Lumen gentium, falando do povo de Deus como do depositário do poder profético e carismático, afirma, citando Agostinho: “A universalidade dos fiéis não pode enganar-se na fé...’quando desde os bispos até o último dos fiéis leigos’ (cf. Santo Agostinho, De praedestinatione Sanctorum 14, 27: PL 44, 980) manifesta consenso universal em matéria de fé e de costumes”. Eram anos em que, com uma oportuna catequese, se deveria mais do nunca sustentar e acompanhar a fé dos simples diante do excessivo poder dos especialistas.
O Ano da Fé coincide com uma crise econômica que está abalando até as sociedades mais desenvolvidas. Alguns dirão que se busca refúgio no espiritual para suportar os problemas materiais. Que relação tem a fé, por exemplo, com a perda de emprego que está angustiando milhões de pessoas também na Itália?
Refugiar-se na fé apenas para não sofrer pelos problemas materiais corresponde a uma ideia errada de fé; aquele que crê, com efeito, é aquele que está ao lado do Senhor Jesus independentemente do fato de que as coisas, humanamente, vão bem ou mal.
A fé, “sobretudo”, não se refere a alguma coisa que seja secundária ao homem. O homem não está já realizado em si prescindindo da sua relação com Jesus Cristo. Ao contrário, a fé é aquilo que leva à realização do humano respeitando-o na sua especificidade e autonomia.
Dito isso, certamente a fé sustenta de modo particular os que atravessam momentos difíceis, ajudando-os a vivê-los e colocá-los em um horizonte mais amplo; porém com isso a fé não exime o crente da realização de todos os passos que humanamente deve cumprir e daquilo que tem a possiblidade de fazer .
Em uma historieta, que circulava em âmbito teológico, alguns anos atrás, contava-se que um navio estava afundando e, então o comandante ordenou: “Os ateus às bombas e os crentes a rezar!”.
O senhor nasceu e cresceu em Gênova e agora é patriarca de Veneza. Há alguma coisa particular que caracteriza e aproxima a fé das gentes do mar?
O amor à própria história e a ligação às próprias raízes, o manter vivas as recordações e as tradições, o valor dado à religiosidade popular e, ainda, entender o sentido da vida como viagem, e ir na direção de uma meta. Enfim, também, uma grande abertura ao futuro e aos outros. Por outro lado, o mar une margens de países e continentes diferentes, o mar torna possível a comunicação entre os homens através de encontros e trocas comerciais mas principalmente culturais; enfim, o mar, justamente na sua imensidade, torna-se símbolo de Deus e da sua infinidade.
E o que o senhor diria da sua fé? Como nasceu? Quais acontecimentos e encontros a alimentaram?
A minha fé, como assenso às realidades cridas, é, agora, a mesma de muitos anos atrás enquanto eu me preparava à primeira comunhão e de quando eu era coroinha; considero isso algo muito belo porque reflete mais uma vez a verdade do Evangelho. Aludo ao convite de Jesus: deixai vir a mim as criancinhas; assim é que a fé aparece – como é realmente – para todos: crianças e adultos, simples e doutos, ricos e pobres; aqui aparece, em um sentido verdadeiro, toda a “democraticidade” da fé. A modalidade de adesão, não toca a substância do ato de fé que está, justamente, na graça, adesão ao mistério e não elaboração cultural. Justamente por isso, os diferentes e múltiplos modos de adesão, mais ou menos cultos, não tocam a própria fé, ou seja, o sim que salva.
E quais indicações o senhor dará para viver o Ano da Fé?
A indicação é redescobrir a fé nas suas características próprias, superando qualquer provável redução e desvirtualização. O risco é fazer disso uma realidade intelectual ou sentimental, não colhendo-a mais como evento salvífico que leva a completar a humanidade; o homem, sozinho, não consegue e a fé permite-lhe de completar a sua humanidade, a fé completa aquilo que a minha criaturalidade somente entrevê e preanuncia.
Por isso, a indicação de método que Jesus dá aos seus, quando os chama ao apostolado, é fundamental. À pergunta: mestre, onde moras? Jesus responde convidando-os a segui-lo. Nós também no início deste Ano da Fé, como primeira coisa, devemos redescobrir a vida eclesial como sequela Christi. Trata-se de viver não somente na Igreja mas, como dizia quase um século atrás Romano Guardini, a Igreja. E para fazer isso é fundamental reconcentra-se em uma oração mais autêntica – especialmente a litúrgica – e também descobrir o gesto humilde da peregrinação, sinal de um caminho comum rumo a meta, que é o Senhor Jesus, início e cumprimento da nossa fé.
Papa Luciani, que também foi patriarca de Veneza, como Papa fez as suas primeiras catequeses sobre fé, esperança e caridade. De que modo a figura deste Papa pode oferecer temas de edificação na atividade pastoral?
Este ano se comemora o centenário do seu nascimento e procuraremos celebrá-lo de modo digno. Para alguns foi até mesmo repreendido por ser fiel demais ao Papa e ao seu magistério. Na realidade ele tentou até o fim harmonizar as coisas e encontrar soluções aos problemas. E hoje, há mais de trinta anos da morte, este patriarca permanece uma recordação muito viva no povo e nas paróquias. Os venezianos, tanto da terra quanto do mar, conservam uma lembrança gratificante e afetuosa da passagem deste patriarca. É recordado como um homem de Deus, um pastor que deixou uma marca entre o povo, pela concretitude dos seus sermões e pela sua capacidade de diálogo e de ouvir.
Retirado de 30 Dias.
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