segunda-feira, 12 de setembro de 2011

A homilia à luz da Sacrosanctum Concilium


A homilia à luz da Sacrosanctum Concilium


Não vou entrar na questão da evolução histórica da pregação cristã. Todos sabemos distinguir entre pregação querigmática, pregação pastoral, pregação catequética e outras formas de pregação do Evangelho. Nem é o caso de tratar da forma do discurso homilético nem da arte da oratória e da eloqüência. Tais questões são reservadas a outros momentos.

Nos últimos anos se produziu bastante sobre a pregação homilética, mas nem tanto sobre sua natureza teológica litúrgica. Aqui nos restringimos à natureza da homilia à luz da Sacrosanctum Concilium, sem considerar o seu desdobramento sobretudo na Instrução Geral sobre o Missal Romano e na Introdução Geral ao Ordo Lectionum Missae.

1. A Sacrosanctum Concilium
Em três passagens, a Sacrosanctum Concilium fala sobre a natureza da homilia.

A primeira encontra-se no contexto da importância da Sagrada Escritura na celebração litúrgica:

“Pois dela [da Sagrada Escritura] são lidas as lições e explicadas na homilia” (Ex ea enim lectiones leguntur et in homilia explicantur”) (SC, 24).

A segunda aparece, onde se trata da leitura da Sagrada Escritura, da pregação, da catequese litúrgica e da celebração da Palavra de Deus:

“Seja também anotado nas rubricas, conforme a cerimônia o permitir, o lugar mais apto para o sermão, como parte da ação litúrgica (utpote partis actionis liturgicae); e o ministério da pregação seja cumprido com muita fidelidade e exatidão. Deve a pregação, em primeiro lugar, haurir os seus temas da Sagrada Escritura e da Liturgia, sendo como que a proclamação das maravilhas divinas, na história da salvação ou no mistério de Cristo, que está sempre presente em nós e opera, sobretudo nas celebrações litúrgicas” (SC, n. 35,2).

A terceira passagem encontra-se no capítulo sobre a reforma do Sacrossanto Mistério de Eucaristia:

“Recomenda-se vivamente como parte da própria Liturgia (ut pars ipsius Liturgiae), a homilia pela qual, no decurso do ano litúrgico, são expostos os mistérios da fé e as normas da vida cristã a partir do texto sagrado”.

Realcemos algumas afirmações:
1) A homilia é parte da ação litúrgica ou parte da própria liturgia;

2) A homilia haure seus temas da Sagrada Escritura e da Liturgia;

3) A homilia é compreendida como explicação ou explanação das leituras bíblicas;

4) A homilia é como que a proclamação das maravilhas divinas, na história da salvação ou seja, no mistério de Cristo;

5) Na homilia está presente e opera em nós o mistério de Cristo.

6) A homilia constitui um ministério de pregação;

7) Em vez de homilia ainda se usa o termo sermão (sermo) como sinônimo de homilia. (Nos Padres da Igreja latinos, o sermo era praticamente sinônimo de homilia).


2. A homilia se reveste das características essenciais da Liturgia
Sendo "parte da própria Liturgia", ou "parte da ação litúrgica", a homilia tem as características da própria Sagrada Liturgia na sua compreensão teológica de Mistério do Culto de Cristo e da Igreja.

Ao celebrar os mistérios de Cristo, a Igreja os contempla, os traz à memória através da Palavra de Deus, que narra e novamente revela e atualiza a Economia divina da Salvação, manifestada e realizada na História da Salvação.

2.1. O caráter memorial da homilia. - A proclamação da Palavra de Deus em si já tem caráter litúrgico, memorial, celebrativo, sacramental. A palavra de Deus se atualiza, quando ela é proclamada em assembléia de culto:
"Nunca, depois disso, a Igreja deixou de reunir-se para celebrar o mistério pascal: lendo 'tudo quanto a Ele se referia em todas as Escrituras' (Lc 24, 27), celebrando a Eucaristia, na qual 'se torna novamente presente a vitória e o triunfo de sua morte' e, ao mesmo tempo, dando graças 'a Deus pelo dom inefável' (2Cor 9,15), em Jesus Cristo 'para louvor de sua glória' (Ef 1, 12), pela força do Espírito Santo" (SC, 6).

Além disso, "presente está pela sua palavra, pois é Ele mesmo que fala quando se lêem as Sagradas Escrituras na Igreja" (SC, 7).

A Palavra de Deus, o Verbo, não é apenas lida ou proclamada, mas é celebrada. Ela é atualizada no memorial da mesma. A proclamação da Palavra de Deus tem valor salvífico em si mesma.

A homilia se situa entre a proclamação da Palavra de Deus ou a Liturgia da Palavra e a assim chamada Liturgia sacramental, onde ela se realiza, formando ambas as partes um só ato de culto, uma só celebração sacramental.

Ela está a serviço tanto da Mesa da Palavra como da Mesa do Pão, sendo o elo entre ambas. Faz a transição entre a Palavra de Deus proclamada na Liturgia da Palavra e a resposta dada a ela. Situa-se entre a proposta de Deus, manifestada na Palavra e a resposta da assembléia, na Liturgia e na vida. Não é apenas elo ou transição. A homilia em si mesma é memorial, em que se renova a Aliança.

À luz das Escrituras, o Senhor Ressuscitado iluminou os fatos acontecidos a respeito do Jesus de Nazaré, fazendo-os compreender o mistério pascal na celebração, em que Jesus deu graças e partiu o pão, e na vida, transformando-os em mensageiros da boa-nova (Cf. Lc 24, 13-35).

Vale lembrar a participação de Jesus no culto sinagogal da Palavra, em Nazaré, narrada por Lucas, onde Ele mostra a atualização da palavra proclamada (cf. Lc. 4,16-30). “Hoje, se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir”.

Na homilia, diferente do tradicional sermão, a Palavra de Deus proclamada é que orienta a pregação. Ela deixa a Palavra de Deus falar.

No sermão, como o termo foi usado após o tempo dos Padres da Igreja, quando era praticamente sinônimo de homilia, o objetivo ou o tema é central. A Sagrada Escritura é usada para fundamentar a tema a ser exposto.

A homilia não quer ser uma aula de Teologia. Não tem como primeira finalidade ensinar ou instruir na doutrina. Não é uma exposição de um assunto de Moral, de Exegese, de Psicologia ou de Pedagogia ou mesmo de Catequese, embora esses aspectos possam estar mais ou menos presentes.

Pode-se dizer que a homilia tem, como objetivo primeiro, colaborar com Deus para que sua Palavra melhor se encarne, para que sua Palavra seja melhor compreendida, encontre uma terra boa que produza muito fruto. E quer ajudar a assembléia a dar, por sua vez, uma resposta adequada à Palavra proclamada, na celebração e na vida, considerando-se sempre que a própria proclamação da Palavra de Deus já constitui um ato de culto, uma renovação da aliança entre Deus e os seres humanos em Cristo Jesus.

Em outras palavras, a homilia é o momento do confronto entre a Palavra proclamada, no contexto do mistério celebrado e a vida do cristão. Deste confronto brotará, como resposta, a conversão. Esta conversão pode adquirir a forma de arrependimento, de adoração, de intercessão, de louvor, de ação de graças e de compromisso de vida.

Resumindo, podemos dizer que a homilia tem por finalidade colaborar com Deus para que sua Palavra se encarne no hoje da vida dos fiéis; ajudar o povo fiel e ao próprio homiliasta que celebram os mistérios de Cristo, a darem uma resposta à Palavra ouvida na fé, na esperança e na caridade, na celebração e na vida; levar à conversão permanente, que consiste em voltar-se cada vez mais para Deus e para o próximo no amor; recolher os motivos de ação de graças; despertar as atitudes do sacrifício de Cristo, do seu Corpo dado e do seu Sangue derramado, na Liturgia e na vida; levar ao compromisso de viver de acordo com a Palavra ouvida e os mistérios celebrados.

2.2. O caráter contemplativo orante da homilia.
A homilia quer atingir o coração das pessoas, o ser humano em sua totalidade, em todas as suas faculdades e sentidos. Ajuda a assembléia a contemplar o mistério celebrado para lançar-se mais profundamente nele, para melhor vivenciá-lo na Liturgia celebrada e na liturgia da vida.

A Palavra de Deus celebrada, ritualmente proclamada, distingue-se por seu caráter orante. Ela é ouvida em atitude de fé, na esperança, visando sempre a caridade. Contemplando os mistérios de Cristo, a assembléia mergulha neles, é atingida por eles. Na sua escuta, a Palavra de Deus é contemplada.

Hoje em dia, fala-se muito em leitura orante da Bíblia. Certamente, a Liturgia da Palavra nas assembléias do culto da Igreja, constitui a forma mais original da lectio divina. Ela pertence à espiritualidade cristã desde as origens. Firmou-se na Celebração da Eucaristia, nas Vigílias e nos Noturnos, agora, Ofício das Leituras da Liturgia das Horas. Permaneceu viva através dos séculos entre os monges, em momento próprio fora das celebração. Hoje, está sendo resgatada. Convém que seja feita também individualmente, sobretudo pelo homiliasta.

No entanto, importa ajudar a assembléia litúrgica a realizar uma escuta orante da Palavra de Deus. As leituras e o Evangelho devem ser rezados na própria escuta, constituindo verdadeiro diálogo entre a proposta de Deus e a resposta da assembléia, onde já se renova a aliança entre Deus e a assembléia. Neste sentido, a homilia não é simples transição entre a Liturgia da Palavra e a Liturgia eucarística, mas ela mesma constitui um diálogo entre Deus e a assembléia, onde se renova a Aliança em Cristo Jesus.

Esta escuta orante da Palavra de Deus, por vezes, toma a forma de oração propriamente dita. É o caso, por exemplo, do Salmo responsorial e da Aclamação ao Evangelho.

Assim também a homilia. Nela estará presente a oração sob vários aspectos. Sendo a homilia antes de tudo contemplação do mistério da fé e sua explicação, (explanação) ou explicitação, atualizando-a no aqui e agora de uma Comunidade de fé, o ministro da homilia só poderá falar na força do Espírito Santo. É no Espírito recebido em sua ordenação, que o homiliasta exerce sua missão de profeta, sacerdote e guia da grei a ele confiada. Também para a pregação no culto, o sacerdote recebeu o Espírito Santo pela imposição das mãos e para isso foi enviado. Só na luz e na força do Espírito Santo, ele poderá dar testemunho do que prega e ser fiel ao mistério de Cristo contemplado e proclamado. Não estaria aqui a razão por que o ministro ordinário e próprio da homilia é o ministro ordenado, sobretudo o Bispo? Aos Apóstolos foi confiado o tríplice poder messiânico de preta, sacerdote e rei, ou do anúncio do Evangelho, da santificação e de governo ou pastoreio.

É sobretudo na Eucaristia, que o Bispo é chamado a anunciar o Evangelho, conforme o ensinamento de São Paulo: “Trago-vos à memória, irmãos, o Evangelho que vos tenho pregado e recebestes, no qual estais firmes. Por ele sereis salvos, se o conservardes como eu vos preguei. De outra forma em vão tereis abraçado a fé. Pois, na verdade eu vos transmiti, em primeiro lugar, o que eu mesmo recebi: que Cristo morreu por nossos peados, segundo as Escrituras; que foi sepultado; que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras, e que apareceu a Cefas, depois aos Doze. Posteriormente apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma vez, dos quais muitos ainda vivem, outros já morreram. Depois apareceu a Tiago, depois a todos os apóstolos. E depois de todos, como a um filho abortivo apareceu também a mim”.

Este é o mistério pascal sempre de novo comemorado e renovado na Celebração dos Sacramentos, particularmente na Eucaristia.

Repito, a finalidade primeira da homilia não é a de transmitir verdades nem a mera explicação exegética da Palavra de Deus, mas a de evocar, contemplar, proclamar, testemunhar e comunicar os mistérios de Deus revelados e realizados em Jesus Cristo e atualizados na Celebração memorial dos mesmos.

Mas, a própria homilia constitui uma forma de oração, com caráter de contemplação dos mistérios celebrados, em forma de profissão e testemunho da fé, em forma de ação de graças pelas maravilhas de Deus, manifestadas na História da Salvação. Possui o caráter de louvor e de glorificação.

Quando o homiliasta crê no que prega, reza o que contempla, também a homilia se torna uma forma de oração para toda a assembléia. Ela se reuniu para a oração, ela conseguiu entrar em íntima comunhão com Deus, por Cristo, no Espírito Santo. Então, ela não se dispersará com a impressão de não ter levado nada, pois ela carrega em si o mistério a ser vivido no dia-a-dia, na Liturgia vivida, na ação da caridade. Terá havido conversão, terá havido crescimento no amor de Deus e do próximo. É isto que entendemos por comunicação litúrgica na homilia, distinta da arte da comunicação também importante. Dá-se uma participação ativa e eficaz.

Ao fazer a homilia, o sacerdote se inclui. Ele fala também para si mesmo. Ele proclama sua fé, ele dá testemunho do mistério pascal de Cristo, núcleo central de toda pregação cristã.

O homiliasta nunca deve esquecer de que a mensagem transmitida pela Palavra de Deus é sempre maior do que o conteúdo de sua pregação. Cada fiel ouvinte, hoje, quando a Palavra de Deus é proclamada na língua do povo, captará também conteúdos da mensagem, diretamente, pela ação do Espírito Santo. Nesta acolhida da mensagem, o fiel será auxiliado, enriquecido pela homilia. Quando a Palavra era “lida” em língua desconhecida e em voz baixa, o homiliasta, tinha que se transformar em anunciador do conteúdo da fé, em catequista. A própria Palavra proclamada e rezada já é anúncio, já é mensagem. Cada ouvinte da Palavra é atingido pela ação do Espírito Santo. O homiliasta realça, explica (desdobra), ilumina o aspecto pascal do mistério pascal celebrado.

Neste sentido, o discurso homilético talvez seja mais amplo do que a homilia propriamente dita. Ele se manifesta também nas introduções à celebração e à Liturgia da Palavra como um todo, dispondo os participantes a acolherem a Palavra em atitude orante, em atitude de conversão, abertos à ação do Espírito Santo. Quem faz a homilia dispõe-se a incluir toda essa ação da Palavra nos corações dos fiéis na ação de graças e no sacrifício memorial de Cristo na Cruz.

Esta contemplação vivenciada levará a um compromisso renovado de vida. Trata-se de despertar atitudes, evocar motivos de ação de graças, exortar para o crescimento e a perseverança no seguimento de Cristo.


2.3. O caráter eucarístico ou de ação de graças da homilia
Podemos dizer também que a homilia busca recolher os motivos de ação de graças a partir de uma penetração mais profunda na mensagem da Palavra de Deus e do mistério celebrado e dispor os corações para entrarem na atitude sacrificial de Cristo, isto é, do Corpo de Cristo dado e do Sangue de Cristo derramado, na atitude do amor, da entrega total a Deus e ao próximo.
A homilia evoca, narra, proclama os benefícios de Deus em favor do ser humano, manifestados sobretudo em Jesus Cristo, razão ou motivo da ação de graças que se segue. Desperta a fé, a esperança e a caridade. Ajuda a assembléia a conformar sua vida com o plano de Deus que se torna presente na celebração. Ajudará a despertar a atitude sacrificial dos membros da assembléia, atitude que consiste em entrar na própria atitude de Cristo diante do Pai, manifestada no mistério de sua morte e ressurreição: atitude de entrega, atitude de Filho muito amado. A Assembléia, acolhendo a Palavra, deixa-se possuir por ela nas virtudes da fé, da esperança e da caridade; ela gera a Palavra e a devolve a Deus com frutos pela palavra e o testemunho de vida. Trata-se, pois, de ser ouvinte atento da palavra, de acolhê-la, de concebê-la no coração, a exemplo de Maria e restituí-la a Deus com frutos.

2.4.Dimensão pascal da homilia.
Sendo memorial dos mistérios de Cristo, do mistério do Cristo total, Cabeça e membros, a homilia tem dimensão pascal. Faz memória da Páscoa de Cristo e dos cristãos, ou das páscoas dos cristãos na Páscoa de Cristo. Os mistérios de Cristo, (páscoa de Cristo), continuam, por obra do Espírito Santo, nos cristãos. Cristo continua agindo pelo seu Espírito no serviço de salvação através dos cristãos. Estas ações pascais dos cristãos completam o mistério de Cristo. Neste sentido, a homilia possui também uma dimensão eclesial.

É próprio da expressão significativa da Liturgia, o rito, acolher e expressar o mistério do Cristo total, Cabeça e membros, em sua dimensão pascal.

Esta páscoa-fato da Igreja e da humanidade toda - mistérios de Cristo - realiza-se nas várias dimensões de sua vida. Penso que a Igreja no Brasil teve uma feliz inspiração, quando apresentou toda a sua vida e sua ação nas conhecidas seis dimensões.

O mistério pascal não se restringe à morte e ressurreição de Jesus. Ele se consuma nos cristãos, nos membros de Cristo. Esta compreensão da páscoa adquire profundo significado no despertar da dimensão sócio-transformadora da vida cristã em geral e, em especial, na experiência libertadora dos povos da América Latina, incentivada e assumida pela Igreja.

Penso aqui no ser humano nas suas diversas dimensões: o homo religiosus, o homo sapiens, o homo faber, o homo ludens, o homo solidarius, o homo patiens. Todas elas podem ser perpassadas do religioso, do sagrado, da dimensão pascal em Cristo, e todas elas deverão refletir-se no momento celebrativo de sua vida, portanto também na homilia.

O homiliasta trará todas estas ações pascais dos cristãos à memória para que os fiéis as transformem em ação de graças e oblação, com Cristo e em Cristo. Ilumina todas essas realidades à luz do Plano de Deus da Salvação, para que os cristãos as vivam no dia-a-dia em dimensão pascal.

Desse caráter da homilia se deduz a necessidade de o homiliasta, em sua pregação, levar sempre em consideração três elementos que nunca poderão faltar: O elemento exegético ou interpretação da mensagem da Sagrada Escritura proclamada na Liturgia da Palavra; o elemento vital, ou aplicação da mensagem à vida da comunidade e de cada um dos que a integram; e o elemento litúrgico ou aplicação da mensagem à celebração litúrgica e à assembléia que celebra.

Daí a necessidade de o homiliasta estar por dentro das realidades da vida humana e da sociedade onde ele vive; a necessidade de, como bom pastor, caminhar com seu rebanho, para poder captar todas as realidades vividas por ele, iluminá-las pela Palavra de Deus e trazê-las para dentro da celebração. Como escreve Reginaldo Veloso: “A homilia é a leitura pascal da vida”.

2.5 Caráter narrativo da homilia: proclamação das maravilhas divinas.
Esta característica decorre do caráter memorial da homilia. A homilia, em si mesma, não desenvolve um tema, não expõe nem defende verdades. Proclamando, ela narra a Economia Divina da Salvação, ou o Plano de Deus da Salvação, manifestado na História da Salvação, sobretudo, em Jesus Cristo.

A homilia deve expor os mistérios da fé, mas em sua dimensão salvífica, como boa-nova a se atualizar na celebração. Deve anunciar, sempre de novo, o Amor de Deus, o Deus Amor, que pede uma resposta de amor da parte do ser humano. A homilia como ação litúrgica atualiza os mistérios do amor de Deus, manifestados em seu Filho Jesus Cristo, no mistério da Encarnação e em sua Igreja através dos séculos.

Os fiéis, já iniciados na fé cristã e no seguimento de Cristo, não se reúnem em assembléia eucarística para conhecer mais, mas para amar mais. Creio que, em grande parte a pregação litúrgica adquiriu formas temáticas, doutrinárias ou catequéticas, pelo fato de a própria Liturgia, sobretudo a Palavra de Deus, em língua estranha e cristalizada, já por si mesma não ser anunciadora da boa-nova, de Jesus Cristo.

No Brasil, até hoje, sentimos esta falha, e continuamos a transformar a celebração dos mistérios de Cristo nos Sacramentos e, sobretudo, na Celebração Eucarística, em instrumento de evangelização, em ocasião de catequese, em imposição de ideologias. A ação evangelizadora deve encontrar outros momentos e lugares para o primeiro anúncio e para a Catequese que não o momento celebrativo que os supõem. Os que se reúnem para participar da Ceia do Senhor ou celebrar os mistérios de Cristo nos sacramentos, vêm porque já crêem no Cristo, já foram iniciados na vida cristã pela Catequese.


2.6 Dimensão trinitária.
Sendo que na Liturgia temos sempre a revelação e a ação da Trindade, também a homilia terá uma dimensão trinitária. A Liturgia é opus Trinitatis. O Pai revela e envia o Filho; o Filho, por sua vez, revela e envia o Espírito Santo. O Espírito Santo, por sua vez, revela, faz conhecer melhor o Filho e conduz para ele; o Filho vai levando a um conhecimento sempre maior do Pai e a ele conduz. Tudo isso acontece naquele dinamismo divino, ao Pai, por Cristo, no Espírito Santo, próprio da Liturgia.
A homilia, pois, contempla e revela o Pai, que age na ordem da criação e da salvação pelo Filho, no Espírito Santo. A Economia divina da salvação brota da Trindade e manifesta-se na história, realizada pelo Filho, no Espírito Santo. O homiliasta contempla e narra esta maravilhosa economia divina à luz das atribuições às Pessoas da Trindade Santa. Trata-se de um Deus Trindade na história da humanidade e na vida de cada pessoa humana. O homiliasta ajudará a trazer esta realidade ao presente na celebração da Igreja, onde o Pai continua a obra da criação, o Filho continua salvando e o Espírito Santo, santificando. Ele ajudará os fiéis a viverem esta dimensão trinitária de suas vidas particularmente na Oração eucarística.

3. A interpretação da Palavra de Deus na homilia
Não sendo a homilia uma exposição exegética da Bíblia, ela deve, contudo, ser fiel à ciência exegética, para que a mensagem da Palavra de Deus seja autêntica. Claro, sempre à luz da Teologia e fiel ao Magistério da Igreja.

Contudo, a Sagrada Liturgia tem uma hermenêutica própria no uso da Sagrada Escritura. Sendo uma ação cultual, fiel ao sentido literal das Escrituras, a Liturgia se interessa em haurir da Bíblia seu conteúdo mistérico, seu conteúdo salvífico. Toda interpretação das Sagradas Escrituras tem certamente seu fundamento na exegese literal. Mas, a exegese racional e científica apenas precede a exegese cristã dos livros sagrados e é como que seu fundamento.

Na Liturgia, a Igreja usa uma exegese espiritual. Ela consiste em reconhecer que o livro sagrado não é um documento puramente histórico, mas a Palavra de Deus. É uma palavra dirigida a pessoas e que exige hoje uma resposta pessoal. A exegese literal pode ser para o cristão somente o fundamento de uma hermenêutica litúrgica em que se atualiza a Palavra de Deus. A exegese espiritual, contudo, não se acrescenta simplesmente a uma interpretação puramente literal do texto: ela é a verdadeira, a plena interpretação duma Palavra que já para o hagiógrafo não era um simples documento humano, mas Palavra de Deus. A exegese espiritual prolonga no tempo a vida do livro sagrado. Os acontecimentos são proféticos: em cada acontecimento, cada pessoa que escuta, encontra-se a si mesma. Trata-se da Palavra de Deus que convoca e realiza a Comunidade, a Qahal Jahweh do Antigo Testamento, a Ecclesia dos cristãos, e prenuncia a Jerusalém celeste.

A Liturgia da Igreja interpreta a Palavra de Deus por aquilo que se cumpre nela mesma. A Sagrada Escritura revela um Deus que age na História, que por seu Verbo divino faz surgir a história e a conduz à consumação.

A Sagrada Liturgia, portanto, também o homiliasta, lê a Sagrada Escritura num sentido bem determinado, todo seu, sob uma luz própria, que constitui como que a sua norma de interpretação. É o princípio da unidade do mistério de Cristo e da História da Salvação.

O mistério de Cristo é um só, desde o plano eterno de Deus, passando pela criação do mundo e do ser humano, a história do povo de Deus do Antigo Testamento, o fato da encarnação do Verbo de Deus e sua expressão no tempo da Igreja até a consumação na parusia.

Nos textos bíblicos encontramos as três ou quatro dimensões do sinal litúrgico, dimensões que abrangem toda a história, toda a realidade, tornando-a atual, colocando-a, por assim dizer, acima do tempo, no mistério.

Os textos bíblicos e as fórmulas e os sinais inspirados na Bíblia, comemoram o passado e, comemorando o passado, indicam realidades presentes e anunciam o futuro. São sinais comemorativos, indicativos e proféticos, suscitando uma atitude e resposta na fé, o que chamamos de dimensão empenhativa.

4. Comunicação litúrgica homilética
Também na homilia devemos distinguir entre a comunicação litúrgica e a arte da comunicação na Liturgia.

Uma vez que a homilia tem as características essenciais da Liturgia, faz parte da Liturgia, é litúrgica, também nela deve realizar-se a comunhão ou comunicação com Deus no homiliasta e na assembléia. O homiliasta comunica Deus à assembléia e comunica a assembléia com Deus. Quem faz homilia, ajuda a Deus a comunicar, a encarnar a sua Palavra e ajuda a assembléia a responder à Palavra na celebração e na vida. Desperta a adesão à Palavra, ou seja, leva à conversão.

Por isso, o Presidente há de se incluir na comunhão com a Palavra de Deus, há de tornar-se um com a Palavra de Deus. Através da acolhida da Palavra, entrando em comunhão com a Palavra de Deus, ele entra em comunhão consigo mesmo, com Deus e com a assembléia. Procura vivenciar a mensagem ouvida e dar testemunho dela. Ajuda, enfim, a mergulhar no mistério revelado. Realiza-se uma comunicação litúrgica.

A arte da comunicação, como a oratória, a eloqüência, os instrumentos técnicos de comunicação usados, constituem meios preciosos para tornar a comunicação litúrgica mais intensa, mais eficaz.

O homiliasta dialoga consigo mesmo e comunica-se com Deus e com a assembléia com todo o seu ser. Não só pela palavra, pelo raciocínio, pelo discurso, mas como Presidente da assembléia, com todo o seu ser e agir: o olhar, a expressão da face, o gesto, a emoção. A assembléia toda comunica-se com Deus através da pessoa do homiliasta, confrontando-se com a Palavra de Deus proclamada, arrependendo-se do mal, pedindo perdão, intercedendo, adorando, bendizendo, renovando a aliança com Deus, comprometendo-se a viver segundo a Palavra proclamada, enfim, rezando. Também na homilia a assembléia reza, ou seja, entra em íntima comunhão com Deus.

Concluindo, certamente uma das prioridades na formação do homiliasta será sua introdução à compreensão teológica da Liturgia e sua iniciação na natureza litúrgica da homilia.

Fonte: Frei Alberto Beckhäuser, OFM

Pequena indicação bibliográfica:

1. Gebhard Fesenmay, o. f. m., A Homilia na Celebração Eucarística, em Fr. Guilherme Baraúna, A Sagrada Liturgia Renovada pelo Concílio, Vozes, Petrópolis, 1964, p. 405-427.

2. Irineu Sansão, Aspectos Teológico-Pastorais da Pregação no culto Divino à luz do Vaticano II, Vozes, Petrópolis 1969.

3. CELAM, Homilia, Edições Paulinas, São Paulo 1983.

4. Luigi Della Torre, Homilia, em Dicionário de Liturgia, Edições Paulinas/Edições Paulistas, São Paulo 1992.

5. Lucien Deiss, A Homilia, em A Palavra de Deus Celebrada. Teologia da Celebração da Palavra de Deus, Vozes, Petrópolis 75-108.

5. Luis Maldonado, A Homilia: Pregação, liturgia, comunidade, tr. Paulus Editora, São Paulo 1997.

6. Alberto Beckhäuser, OFM, A homilia à luz da Sagrada Lituriga em Pe. Geraldo L. B. Hackmann (Org.), Sub Umbris Fideliter. Festschrift em homenagem a Frei Boaventura Kloppenburg, EDIPUCRS, Porto Alegre 1999, p.11-39.

7. Alberto Beckhäuser, OFM, Comunicação homilética, em Comunicação litúrgica: Presidência, Homilia, Meios Eletrônicos, Vozes, Petrópolis 2003, p. 35-84.

8. Frei Alberto Beckhäuser, OFM, Hermenêutica e Liturgia: REB 32 (1972) 568-580.

9. Dizionario di Omiletica, a cura di Manlio Sodi - Achille M. Triacca, Editrice Elle Di Ci - Editrice VELAR.

Fonte: Portal Católico

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